quinta-feira, 30 de abril de 2015

ÁVIDO CUPIDO


Alguns relacionamentos são perturbadores. Brigas, pontapés e ofensas fazem parte da dinâmica do lar. Mas Thaís e João Luiz formam um casal amoroso desde o princípio. Este mês completaram quinze anos que vivem juntos, oito oficialmente. Ela reconhece que o marido é cúmplice nos júbilos e percalços da vida.  Afirma que se hoje é fortaleza foi porque aprendeu com ele sobre perdas e ganhos.
Conheceram-se no trabalho. João era o chefe e fazia poucos esforços em suas conquistas amorosas. Afinal, eram muitas mulheres interessadas em homens com seu perfil.  Thaís sabia disso e afastava da concorrência. Discreta observava João, mostrando desinteresse.
Um dia ele tomou coragem e fez o convite que há dias teimava escapar da garganta. Sem encenação perguntou “quer sair comigo hoje para jantar”? Thaís se surpreendeu com o convite embora conhecesse a fama de querido que envolvia o chefe.  Com o mesmo supetão da pergunta, João recebeu a resposta promissora. Ela queria mudanças em sua vida e apesar de encafifada com a ousadia do chefe, pressentiu a oportunidade no convite.
Thaís ao chegar a casa começou a experimentar algo estranho. Olhou o reflexo no espelho, girou em torno de si e reparou que estava gorda, feia, com fisionomia cansada e cabelo desgrenhado.  Para emagrecer o tempo era curto. Decidiu que o salão de beleza seria um excelente coadjuvante da esquisitice. De última hora fez pé, mão, maquiagem e escova, após cortar 32 cm de cabelo.
A noite aproximava.  Thaís após transformação era outra mulher.  Perfumada e confiante aguardou a chegada do pretendente, e o ávido cupido com golpe encantador cravou sua seta no coração do chefe.  

sexta-feira, 24 de abril de 2015

MÃE DESOLADA

Na emergência de um hospital encontrei casais e famílias preocupadas com a saúde de parentes. Fisionomias cansadas, desanimadas, algumas sem esperança.  Uns em consultas rápidas, outras em direção à internação.  Bebês soluçavam ora com fome, ora com dor.
A mãe adolescente estava com as filhas. A criança de colo tinha problemas respiratórios. Ao mamar no peito, faz esforço extra para controlar a respiração e sucção. Fica impaciente, geme, mas não desiste da alimentação. A mais velha, com três anos, tenta acalmar a irmã. Acaricia cabeça, cabelos, murmura palavras doces e canta “galinha pintadinha”. Quando a irmãzinha acalma ela perambula pelos corredores, contando e saltando os quadrados do piso. Permanece alegre e distraída no mundo infantil. 
A mãe das crianças exausta exibe olheiras de amargura. Em conversa no telefone do hospital, comenta “cuidar de duas não é fácil”. Ao mesmo tempo   em que segura o fone, limpa a coriza da neném com os dedos. Desamparada carrega a filha no colo enrolada em uma manta que arrasta pelo chão durante idas e vindas aos laboratórios de exames. Deixou para trás focos de infecção. 
À avó que não sabia como cuidar das três, netas e filha, segue automática, passos e ordens. 


quinta-feira, 16 de abril de 2015

EXCURSÕES CULINÁRIAS


                Imagem do google
Celeste está fazendo excursões pela cozinha e tem aceitado o desafio com diversão. Aprende a descascar e cortar cebola com arte e eficiência. Sábado fez macarrão de uma panela só. Excelente resultado obteve, porém prefere de duas panelas. Uma para o macarrão e outra para o molho. 
Domingo de Páscoa convidou familiares para almoçar e topou a provocação, fazer bobó de camarão.  Receita há em sites da internet. Algumas pessoas disseram “difícil” outras “trabalhoso”. Como consultora, a mãe que já cozinhou muito bem.  Atualmente, fica na administração. 
Celeste tinha tempo suficiente para preparar o prato. Separou os temperos e cortou tudo como manda o figurino. Pegou o camarão cinza já descascado pela Rosana, e surpresa, descobriu que o intestino do crustáceo permanecia. Passou raiva. Impossível de seguir em frente. Parou o que estava fazendo e durante uma hora e vinte minutos limpou um por um. Dores no pescoço e nas costas acompanharam a tarefa árdua. Almoço atrasado. Após a limpeza do camarão, passa para etapa seguinte, temperar e refogar. 
Teve colaboração do marido. Enquanto cozinhava o aipim Mário foi buscar, na casa da mãe, leite de coco e moedor para passar a mandioca. Celeste pede socorro à filha, mas ela preparava os chocolates da sobremesa. A única solução foi telefonar aos convidados e pedir paciência. Seguiu na atividade, agora sem pressa. Mistura ingredientes, mexe panela, prova o sabor da alquimia e percebe que o resultado esperado brotava no aroma envolvente. 
Os familiares chegam. A filha com chocolates decorados, o restante com apetite. Antes de servir aos convidados, pede a mãe para provar à culinária. Caprichosa, adornou o prato com os componentes. Alguém comenta “vai bancar Ana Maria Braga”. A ansiosa Celeste, que precisava da aprovação da chef, observa a mãe exclamar “hummmmmm”. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

IMPRUDÊNCIA E EMOÇÃO


Um barulho ensurdecedor assusta os que ocupavam a sala de visita. Olhares cruzam e a conversa volta ao ritmo normal. O trovão derrubou a luz, mas voltou. O vai e vem da falta de energia repetiu três vezes. Decisão geral de desligar as tomadas dos eletrodomésticos. Os que estavam fazendo a sesta acordaram. 
A reunião familiar seguiu até às dezoito horas. Alguns convidados foram embora no pico do temporal. Tinham compromisso. Abriram o portão da garagem manualmente. Pouco tempo depois, celular avisa que há mensagem “caiu um raio no seu condomínio. Duas pessoas morreram. Pai e filho”. Domingo de Páscoa não é dia para tragédia! 
Imediatamente pensei na mulher e mãe que perde inesperadamente pessoas de convívio próximo, amados. Entrei no site indicado e soubemos dos acontecimentos. O raio arrebentou o fio de alta tensão e os pneus do carro incendiaram. Os homens tentavam salvar o veículo do fogo que alastrava. Morreram eletrocutados. Ficamos paralisados diante dos fatos. 
Desconheço os motivos para reagirem de forma tão insensata. Mas, seguramente a emoção, instinto ou pulsão que nos protege e também aos bens, foram mais fortes que a prudência. 
À noite, saí para caminhar e segui em direção ao infortúnio. A lua cheia iluminava a escuridão. Moradores do condomínio compartilhavam, em silêncio, a dor familiar. A penumbra que envolvia a casa refletia o ânimo dos residentes.  Marcas ficarão no asfalto, nos solidários e na família.   

quinta-feira, 2 de abril de 2015

ALTAR MOR: PRETO NO BRANCO


Pirenópolis nasceu de um arraial minerador no século XVIII. É cidade do interior goiano, pitoresca e atraente, fincada aos pés da Serra dos Pireneus. Atualmente, patrimônio histórico nacional. Coloridas casas de adobo encantam visitadores. Expostas nas janelas, namoradeiras de argila com olhares traiçoeiros, seduzem passantes. 
Pela sexta vez, passeio pela charmosa cidade, escutando histórias da sua gente. Desta vez, a curiosidade seguiu rumo religioso.  Na Praça do Coreto, entrei em loja de artesanato e adquiri flores de fita. Depois estive em café onde abrandei a fome. Enquanto aguardava o lanche, observei particularidades da decoração. Lustres antigos de porcelana e ferro, lavatório, portas, teto, canoa de madeira pendurada na parede.  Fazendo parte do arranjo, a história da capela Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, erguida nas horas de folga dos escravos, em 1746 e 1757. Neste século os negros eram proibidos de frequentar a igreja dos brancos. Tinha uma torre, porém mais tarde, outra foi acrescentada. Erro na construção abalou a estrutura e no ano de 1944 a capela foi demolida. Preciosidades religiosas que a ornavam foram espalhadas pelas demais igrejas da cidade. 
No dia seguinte visitei a igreja Matriz, Nossa Senhora do Rosário, essa destinada aos brancos. Em 2002 sofreu grande incêndio, que de acordo com a população, foi criminoso. Moradores acreditavam que os responsáveis eram mendigos revoltados. Escutei de um habitante a seguinte história: “na madrugada um carro parou na janela, que havia sido arrombada,  situada na parte detrás da igreja. Peças religiosas ornadas a ouro foram recolhidas pela quadrilha especialista em roubo a santuários. Fugiram, porém para encobrir o pecado, atearam fogo na Matriz.” Noite inteira ardendo em febre. Um mês depois, mistério desvendado. Tempo suficiente para fuga e desmanche das relíquias. Paredes de barro cru em taipa de pilão resistiram à intempérie. Madeiras do telhado, danificada pelo cupim, sucumbiram à ambição. O nobre órgão tocado por gerações virou cinza. O sino derretido pelo calor do fogo é peça de exposição.
Sentimentos abafados pela perda irrecuperável foram substituídos pela restauração. Paredes foram reforçadas.  Órgão, sino e altares laterais que compunham a história religiosa, insubstituíveis. Para o altar mor uma inspirada solução. Duas igrejas destruídas, na mesma cidade, com nome da santa de devoção. Dos pretos, estrutura abalada. Dos brancos pela ação do fogo. O altar da capela dos pretos, preservada. Dos brancos, fundida. Humildemente, por ironia do destino, o altar mor de rara beleza, da igreja dos pretos passou a ocupar a igreja dos brancos.  Em Pirenópolis, brancos e negros, convivem em harmonia.