segunda-feira, 24 de agosto de 2015

NOSTALGIA

Arquivo pessoal
Caminhar faz bem para o corpo e a mente. Evita câncer, AVC, diabetes,  depressão, protege contra a demência, emagrece e pasmem seca a barriga. O site “minha vida” garante que a caminhada oferece onze benefícios à saúde.
Enfim, caminho todos os dias porque há necessidade e sigo com determinação. Escolho roupa adequada, passo filtro solar, calço meia e tênis, posiciono óculos escuros e chapéu, completo com brinco e batom.
Encontro sementes de árvores caídas no chão prontas para serem pisadas e explodir. Cachorros amarrados pela coleira perambulam com seus donos. Alguns até recolhem as fezes dos animais. Outros deixam para lá. Andando, percebo pessoas, às vezes interrompo para conversar.

D. Izabel, uma senhora viúva de 90 anos é magra, tem cabelo chanel e gosta de usar vestidos longos, que diz parecer camisola. Passeia todos os dias pela  calçada adequada aos idosos. Segue amparada pela acompanhante. Quando a encontro chama para dialogar. Um dia fui convidada a visitar seu lar.  Mostrou, com orgulho, os aposentos da casa, fotos dos filhos e netos.  É lúcida, mas não confia na memória e os comentários que faz certifica com a cuidadora “não é isso Tereza?” Que sempre confirma. Confidencia sobre as ex amantes do marido. Em seguida garante que, apesar da traquinagem era um bom homem e a deixou financeiramente muito bem. Segue narrando sobre o passado. Esteve na Europa, em Roma. Visitou o Vaticano “quando entrei no santuário o papa pediu para eu cozinhar. Então fui”. Desta vez tem convicção e não pergunta a Tereza. No terreno da casa há todo tipo de fruta e comunica aos passantes que entrem para apanhar. D. Izabel é mulher solitária. Interrompe porteiros, jardineiros e faxineiros, que estão em serviço, para ter com quem falar. Os moradores estão na correria e precisam seguir caminho porque trabalham.  As amigas já faleceram e há poucas pessoas com quem conviver. D. Izabel reproduz sua vida com nostalgia e vê poucas oportunidades no amanhã. 

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

SEQUESTRO

Meu nome é Pedro. No pequeno recinto que habito com outros colegas, sobra tempo para pensar. Escondidos dos guardas, compartilhamos um celular. Falamos com namoradas, esposas, filhos, amigos e advogados. Também fazemos transações telefônicas escolhidas ao acaso. 
Uma noite ligamos para uma casa.  A dona atendeu. Comuniquei  que a filha havia sido sequestrada. Ao fundo, um som confuso dificultava o entendimento. Precisei repetir a mensagem várias vezes.  A senhora, assustada, pediu um minuto para tranquilizar. Nunca tive muita paciência e transferi o celular a um camarada que com admirável esperteza reproduziu a voz de uma mulher em desespero.  Aos prantos, a senhora, conversou com quem pensava ser a suposta filha. O farsante suplicou que atendesse a solicitação do homem, caso contrário corria risco de vida. 
 Retorno ao celular e apresento a exigência. A mulher avisa que precisa comunicar ao marido e solicita que ligasse mais tarde.  Trinta minutos, tempo suficiente para transmitir o determinado. 
No relógio acompanhei, com impaciência, os momentos passarem. Completo a ligação. A mulher atende. Exijo o cumprimento da solicitação. Calmamente ela fala “senhor passarei o telefone para meu genro. Um momento”. Escuto a voz imponente do homem “Alô! Aqui é o delegado Gustavo”. Assustado com o imprevisto espatifo o celular na parede da cela e levo uma surra dos camaradas. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

SEM NOÇÃO

Arquivo pessoal
Brasília é uma cidade de clima tropical. Verões chuvosos, umidade do ar de 70%. No inverno é seco e cai para 13%. A temperatura é sempre agradável. Nos meses de setembro e outubro a poeira se eleva nas alturas tingindo o céu de carmim e o mato do cerrado queima com desenvoltura. Algumas pessoas têm dificuldades respiratórias e consultam médicos. Outros frequentam os hospitais para fazer nebulização. 
Na época da seca a capital fica linda. Os ipês abrem suas flores e enfeitam a cidade de rosa, amarelo, branco e roxo. As pessoas sacam fotos do colorido majestoso e compartilham, com orgulho, nas redes sociais. O arco-íris dos ipês faz contraste com a grama seca que permanece bege.
Com a umidade muita baixa, os carros ficam envoltos por uma fina camada de poeira e os veículos necessitam ser lavados com maior frequência. Precisava lavar o meu com urgência. Cheguei ao posto e permaneci na fila. Estranhei. O lavador estava desocupado e o carro a minha frente fechado. Perguntei o que havia com o lava jato. Ele respondeu que não podia trabalhar porque o dono do carro estacionou, saiu e ele desconhecia o paradeiro do homem.
Fiquei irritada, tinha pressa. Iria almoçar para depois trabalhar. Buzino para chamar atenção do responsável pelo automóvel. Não apareceu. Tentei mais duas vezes. Ninguém. Desci do carro e tirei uma foto. Depois, peguei o batom da bolsa e escrevi no para-brisa do veículo estacionado “sem noção”. 
Segui meu destino refletindo sobre o acontecimento. O homem é um folgado? Com cólicas intestinais seguiu em direção a um banheiro? Ou aconteceu o pior?