sábado, 24 de outubro de 2015

NÃO DEIXAREI BARATO

Volto para casa com os filhos e ao aproximar das imediações onde resido, avisto chamas. Época de seca em Goiás e mais uma queimada no cerrado, penso. Para surpresa, o que arde é minha casa. O coração acelera e as lágrimas correm soltas pela face. Estaciono perto, as crianças dormem no banco de trás do carro. Desço e corro em direção a casa quando sou contida pelos bombeiros. 
Sento no meio fio e viajo mentalmente pelo interior do domicílio enquanto observo as chamas apagarem. Recordo o quarto das crianças com os brinquedos, material da escola e observo os pertences intactos. Sigo para sala, cozinha e jardim. Retorno à realidade e reflito sobre perdas, ganhos e reparação. No sacrifício e desesperança. Após delírio inicial, recordo que sonhei com minha cama pegando fogo. 
A separação é litigiosa. Reivindico a compra da casa por preço barato em troca da pensão para mim. Sou independente, os filhos estão sob minha guarda. O ex prometeu “se o juiz determinar a causa em seu favor, não deixarei barato. O dinheiro para compra gastará de outra forma”. Relembrando este comentário raciocinei, dito e feito.
Outra causa na justiça. Descobrir quem foi o responsável pelo incêndio. Faz cinco anos que rola o processo. Até hoje nada provado. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

DEIXA FICAR

Renato já passou dos 80 anos. Sua esposa, Izabel, é dez anos mais jovem. Têm duas filhas e um varão. Todos com vidas próprias, habitando a mesma cidade. Os filhos revezam nas visitas aos pais, já que trabalham o dia inteiro. 
A saúde de Renato está debilitada. Enxerga insuficiente, apresenta dificuldade de memória, além de incontinência urinária. Vai levando a vida devagarinho, amparado por Tereza, a cuidadora. 
Izabel é coerente nos costumes e já teve muita paciência com o marido. Atualmente está menos benevolente e cansada de suas aberrações. O apartamento que habitam é espaçoso e para evitar encontros com Renato, reserva o escritório para meditar, escrever seus poemas e bordar. Izabel sente afeição pelo marido, embora reconheça que o homem do passado não habite o corpo atual. Foram grandes as mudanças e inúmeras adaptações. Está enfastiada. 
Renato, toda vez que encontra Izabel no apartamento, estranha a pessoa. “Quem é você? O que está fazendo em minha casa? Vai embora”. Ela que explicava ser a esposa, agora dá as costas e fica aborrecida. Izabel comentou a filha Patrícia “estou intolerante com seu pai, preciso ficar isolada no escritório porque ele apoquenta”. 
Um dia a filha de visita, à ladainha repete. Patrícia faz pilhéria e diz ao pai “vou mandar essa mulher embora de sua casa. Ela incomoda”. Para surpresa Renato imediatamente pondera “deixa ficar, coitada, já estou acostumado”. 

sábado, 3 de outubro de 2015

PASSAGEM DE TREM

Arquivo pessoal
Camila está eufórica. É a primeira viagem à Europa. Ao chegar à capital do país, trafega de ônibus pelas excelentes rodovias em direção a Coimbra. Cidade onde participará, como palestrante, em um congresso. Nos dias de folga, aproveita para conhecer algumas regiões do país. 
Portugal tem excelente malha ferroviária e acatando sugestões segue com seu marido a estação. No local há um setor de turismo e Camila pergunta a funcionária sobre uma cidade pitoresca para visitar. A moça gentilmente indica Aveiro e comenta com orgulho “É a Veneza portuguesa”. Entusiasmado, o casal segue em direção ao setor de venda de passagens.

Após longa espera na fila, o marido chega ao guichê. 
- Senhor quero passagem para Aveiro. 
O funcionário imóvel, não atende ao pedido. 
Márcio repete: 
- Passagem para Aveiro. 
- Para quantas pessoas? -Pergunta o atendente. 
- Duas. - O funcionário continua sem atender a solicitação. 
Márcio, sem paciência, não compreende a indecisão do homem e questiona. 
- O que falta?
- A que horas quer viajar? -Responde o servidor com uma pergunta.  
- No próximo trem. 
A criatura continua paralisada e o brasileiro irritado completa. -Uma passagem para duas pessoas, com destino a Aveiro, no próximo trem.
O inerte servidor conclui:
- O Senhor ainda não disse se quer viajar em trem vagaroso ou trem bala. 
- Márcio solta faísca: 
- Tá bom! Trem vagaroso, por favor. 
Neste momento, o funcionário sem mais perguntas, entrega finalmente a passagem. Camila e Márcio, incrédulos, se entreolham com o bilhete na mão e acenando ao funcionário seguem cantarolando para a plataforma.