quarta-feira, 23 de setembro de 2015

DE CARÁTER

Imagem google
Em direção à sala de embarque de retorno ao seu país, Lídia percebe que havia perdido as fichas de embarque. Comunica ao marido sobre o ocorrido. O companheiro assustado arregala os olhos e juntos voltam, o longo caminho do aeroporto de Lisboa, olhando para o chão.
Encontra um funcionário do aeroporto dentro de um balcão lendo um jornal. Vai em sua direção e desatinada fala “senhor perdi a ficha de embarque e não encontro. O que devo...?” Antes de terminar a pergunta, o homem baixa o jornal até a altura dos olhos e indaga calmamente “E eu com isso?”. Lídia fixa o olhar na cara da insólita criatura. Desorientada e mais estressada, ela visualiza o anticristo à frente.  
Toma outra direção, seguida do esposo. Encontra um funcionário parado na porta da antessala de inspeção de passageiros. Faz a mesma indagação enquanto aproxima. O homem estende os braços impedindo a moça de entrar na sala. Lídia repete a frase. O indivíduo responde “volte à sala de embarque que alguém pode ter encontrado e deixou com a recepcionista”. Ao obter a resposta, reflete imediatamente “Como não pensei? Tão elementar!” Lídia agradece ao anjo e corre ao portão de embarque.  
Os nervos estão estremecidos e a cabeça pesada pelo estresse. Lá está a ficha. Um brasileiro, de caráter, também de retorno ao Brasil, havia encontrado o documento jogado na esteira rolante e, como o costume, entrega na recepção. 



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ÚLTIMA VEZ

Arquivo pessoal
Depois de 46 anos de casados o dia amanheceu cinza para Marisa. A morte chegou sem recado, fulminante. A mulher pegou a agenda com o número dos telefones de seus conhecidos e comunicou a morte do marido. Não haverá mais diálogo, nem desentendimento entre os dois. 
O céu permanecia limpo, a temperatura insuportavelmente quente. Para o velório, escolheu vestido negro com bolsos vermelhos. Não gostava de luto fechado. Seguiu ao cemitério com os filhos. Eles tinham os olhos molhados e o coração destroçado de dor. 
Os familiares chegavam ao velório e choravam pela perda. Marisa calada.  Expressão transtornada. A boca apertada de amargura, os olhos paralisados de ressentimento. 
Jorge vestia terno cinza e gravata vermelha, combinando com os bolsos do vestido da mulher. As rosas amarelas que ornavam o caixão desprendiam leve aroma pelo ambiente. Vistosas guirlandas de crisântemos deixavam o ambiente ainda mais fúnebre.  
Os amigos consolavam Marisa, ela permanecia muda. Até que chegou o sacerdote para fazer as despedidas religiosas. Sentada em uma cadeira, escutou toda a oração e rezou o Pai Nosso em coro com os convidados, sem derramar lágrima. 
Para surpresa geral, Marisa levantou da cadeira, agarrou o defunto pela gravata e sacudiu o homem tão forte que as rosas saltaram para fora, enquanto os convidados agarravam o caixão para o defunto não cair no chão. Aos gritos e raiva nos olhos disse “Como se atreve? Jamais podia ter morrido, agora estou sozinha e sem ninguém para brigar”. Marisa lutou com Jorge pela última vez. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

PERDEU A GRAÇA

Arquivo pessoal
Perdeu a graça, foi a mensagem que escutei de uma amiga. Estávamos em uma cerimônia de casamento pomposa. Os preparativos foram feitos no gramado da mansão. A decoração estava suave, mas com toque de provocação. Tapete branco seguia em direção ao altar, ornado por inúmeras rosas vermelhas. 
Depois do culto fui para a recepção. Reuní com amigas de profissão e juntas sentamos ao redor da mesa redonda. Nossos maridos aprovaram a decisão. O garçom que servia a bebida perguntou o que desejávamos tomar. Os homens optaram por uísque, cerveja e vinho. As mulheres o delicado coquetel de frutas. Conversávamos sobre a festa, a noiva e assuntos de trabalho. À medida que as horas passavam, a conversa tornava mais animada. Acomodamos as  cadeiras para ficarmos mais perto uma das outras. Milena era a mais contente e tagarela. Sorria livre. Nossas gargalhadas eram provocadas pela alegria dela. 
Coquetel chegando e Milena arrebatando. Ela comentou que sua exaltação era proveniente do excesso de bebida. Outra vez retornou o garçom com a bandeja cheia de taças. Todas nós estávamos bebendo, mas o prazer era menor. Então perguntei ao jovem garçom? “O coquetel tem bebida alcoólica?” Ele respondeu: Não. 
Milena, que estava exibindo um sorriso largo, ficou séria, afastou a taça e disse “perdeu a graça”.