sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

VISIVELMENTE IRRITADO

Estou exausto. Havia trabalhado muito durante o dia. Após terminar todas as atividades, passo no shopping para tomar café com pão de queijo. Permaneço na lanchonete cerca de uma hora, checando os recados do celular e observando os passantes com sacolas recheadas de presentes natalinos.  
Após breve descanso, sigo ao caixa do estacionamento mais animado e vou ao local onde está minha moto. Ao aproximar estranho a ausência do veículo. Sinto súbita aflição ao pensar na perda de transporte tão útil, além do mais, de grande estima.  
Apreensivo, chamo o guarda da garagem e reclamo sobre o ocorrido. Estou indignado e questiono ao homem sobre a falta de segurança do shopping. A raiva eclode quando o guarda garante que naquela vaga não havia parado nenhum veículo. Quero tirar dúvidas e exijo ver as imagens das câmeras. Educadamente o homem me conduz até o recinto onde trabalha o chefe. 
Falo alto, gesticulo e explico o caso. Sem questionar, o administrador revela as imagens. Concluímos que nenhuma moto saiu do estacionamento. Pondero “uma camionete pode ter parado ao lado do meu veículo e a colocou no bagageiro. Sem que ninguém percebesse carregou a moto”. Revejo as imagens e constato que este também não foi o caso. 
Comunico que vou pedir indenização. Saio do shopping aborrecido e vou a delegacia fazer boletim de ocorrência. 
No dia seguinte, pela manhã, telefona o administrador do shopping “Sr. Raul sua moto foi encontrada. Pode vir buscar”. 
Sem compreender o ocorrido vou ao centro comercial. Encontro o administrador e ele descreve “O senhor estacionou a moto no número da vaga mencionada, porém no 2º andar”. Envergonhado, peço desculpas pelas grosserias e monto na moto exultante de contentamento. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

NA BOATE TAMBÉM

As primas quando estão juntas sempre organizam passeios. Desta vez, combinam ir a boate encontrar com amigos da faculdade. Passam o dia escolhendo roupa, adereços, cuidando das unhas e cabelos. 
À noite chega e entusiasmadas seguem no carro da Amanda em direção ao destino. Os amigos as aguardavam preocupados com a demora das jovens. O encontro é esfuziante. A música toca alto e juntos dançam no salão, após tomarem drinques.  
Algumas horas mais tarde, Kátia vai ao banheiro retocar a maquiagem. Aproveita para esvaziar a bexiga. Ao sair do recinto, segue bailando de volta ao salão. 
O cansaço chega às quatro horas da manhã. As primas decidem voltar a casa e chamam o garçom para encerrar a conta. Kátia, somente agora, descobre que esquecera a bolsa no banheiro. Vai apavorada ao sanitário e não encontra os pertences. Na gerência, ninguém viu. 
Amanda, por sua vez, tem o hábito de sair sem bolsa. Coloca seus documentos e chave do carro na carteira de uma colega. Dessa vez não foi diferente. As duas solicitam ajuda de um colega para acertar a conta na boate e pede que as leve em casa para pegar chave reserva. 
Sua genitora já havia alertado a filha, sobre levar sua própria bolsa com os documentos, quando vai as baladas. Ela teima em seguir seus próprios instintos.
No dia seguinte, Amanda decide ir a polícia fazer queixa. Pede ajuda a mãe, que recusa e diz “já falei que saia com seus pertences em mãos e você nunca escuta. Agora vá sozinha resolver os problemas. Não é mais criança que necessite que eu esteja ao lado, guiando seus passos. Quando quis ir a boate foi sozinha. Por que agora precisa da minha companhia?” Amanda contesta “na delegacia tem muitos homens”. A mãe contradiz “na boate também”. 

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

SERRA, SERRA, SERRADOR...

Maristela é a primeira neta por parte dos seus avós. Nasceu ruiva com olhos de mel. É graciosa, gentil, inteligente e educada. Estuda nos colégios mais conceituados de Ribeirão. Para distrair lê contos infantis, desenha, faz ballet e brinca com as amigas. 
Tem um irmão que é moreno claro, parecido com o avô. A mãe queria outros filhos, mas por problemas de saúde precisou contentar com dois. Enquanto sua irmã tem trigêmeos. 
A tia é irmã mais velha e mora no triângulo mineiro. Sempre que há oportunidade vai ao seu encontro. Esta é casada com Ricardo, homem ríspido e, para os parentes, de confiança. Toda vez que a família decide viajar para casa da tia, a menina fica apreensiva e tem crises de choro. 
Apesar de severo, quando Maristela chega de viagem, o tio fica visivelmente transformado. Dizem que queria ter tido uma filha. Brinca com a molecada, passeia de carro, leva ao parque e compra sorvete. Toda vez é a mesma coisa. Enquanto está junto com os meninos, Maristela aproveita o momento, porque sabe que Ricardo usa argumentos para ficar sozinho com ela. 
 À noite o tio conta histórias infantis, canta e a convida para comer jujuba. O restante da turma fica brincando na sala ao lado. A espontaneidade de Maristela fica sufocada porque sabe que o tio não tardará a cantar “serra, serra, serrador, quanta madeira você serrou...” No momento da canção o homem pega sua cintura e a coloca encaixada em sua intimidade. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

DESPREOCUPADA

Marisa está muito ocupada com os afazeres domésticos. O saboroso almoço aguarda em cima do fogão, a chegada do marido e filhos da casa da avó. Dia de feriado, ideal para organizar a casa, as crianças fazerem o dever e aproveitarem o parque de diversão. 
Nada disso foi concluído diante da preocupação familiar, com o sumiço da Luciana. Após o almoço, a família foi descansar. Cada um escolheu onde queria pousar. O casal foi para o quarto, o filho escolheu a rede e Luciana...
A mãe desperta e decide visitar a amiga que está adoentada. Marisa procura a filha para irem juntas. Chama por ela e sem resposta. Vai ao quarto, segue em direção ao quintal, jardim da casa e nada. Procura por ela no pé de manga, um dos lugares eleitos pela filha para brincar, ninguém. Enfurecida pela desobediência, porque saiu sem avisar, vai à casa da amiguinha vizinha. Lá Luciana não apareceu. 
Marisa volta para a residência e novamente procura pela filha no quarto, quintal, jardim, mangueira e outros destinos. Acorda o marido que fica assustado diante da informação “Luciana sumiu”. Telefonam para amigos, parentes e perguntam sobre a filha. Ninguém tem notícias. O irmão dorme tranquilo na rede. Os nervos a flor da pele fazem com que o casal decida ir à polícia a caça de notícias. 
Entra no quarto em prantos e abre à porta do armário a procura de roupa apropriada para ir à delegacia. Lá encontra Luciana dormindo em cima das macias toalhas de banho, despreocupada. 


sábado, 24 de outubro de 2015

NÃO DEIXAREI BARATO

Volto para casa com os filhos e ao aproximar das imediações onde resido, avisto chamas. Época de seca em Goiás e mais uma queimada no cerrado, penso. Para surpresa, o que arde é minha casa. O coração acelera e as lágrimas correm soltas pela face. Estaciono perto, as crianças dormem no banco de trás do carro. Desço e corro em direção a casa quando sou contida pelos bombeiros. 
Sento no meio fio e viajo mentalmente pelo interior do domicílio enquanto observo as chamas apagarem. Recordo o quarto das crianças com os brinquedos, material da escola e observo os pertences intactos. Sigo para sala, cozinha e jardim. Retorno à realidade e reflito sobre perdas, ganhos e reparação. No sacrifício e desesperança. Após delírio inicial, recordo que sonhei com minha cama pegando fogo. 
A separação é litigiosa. Reivindico a compra da casa por preço barato em troca da pensão para mim. Sou independente, os filhos estão sob minha guarda. O ex prometeu “se o juiz determinar a causa em seu favor, não deixarei barato. O dinheiro para compra gastará de outra forma”. Relembrando este comentário raciocinei, dito e feito.
Outra causa na justiça. Descobrir quem foi o responsável pelo incêndio. Faz cinco anos que rola o processo. Até hoje nada provado. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

DEIXA FICAR

Renato já passou dos 80 anos. Sua esposa, Izabel, é dez anos mais jovem. Têm duas filhas e um varão. Todos com vidas próprias, habitando a mesma cidade. Os filhos revezam nas visitas aos pais, já que trabalham o dia inteiro. 
A saúde de Renato está debilitada. Enxerga insuficiente, apresenta dificuldade de memória, além de incontinência urinária. Vai levando a vida devagarinho, amparado por Tereza, a cuidadora. 
Izabel é coerente nos costumes e já teve muita paciência com o marido. Atualmente está menos benevolente e cansada de suas aberrações. O apartamento que habitam é espaçoso e para evitar encontros com Renato, reserva o escritório para meditar, escrever seus poemas e bordar. Izabel sente afeição pelo marido, embora reconheça que o homem do passado não habite o corpo atual. Foram grandes as mudanças e inúmeras adaptações. Está enfastiada. 
Renato, toda vez que encontra Izabel no apartamento, estranha a pessoa. “Quem é você? O que está fazendo em minha casa? Vai embora”. Ela que explicava ser a esposa, agora dá as costas e fica aborrecida. Izabel comentou a filha Patrícia “estou intolerante com seu pai, preciso ficar isolada no escritório porque ele apoquenta”. 
Um dia a filha de visita, à ladainha repete. Patrícia faz pilhéria e diz ao pai “vou mandar essa mulher embora de sua casa. Ela incomoda”. Para surpresa Renato imediatamente pondera “deixa ficar, coitada, já estou acostumado”. 

sábado, 3 de outubro de 2015

PASSAGEM DE TREM

Arquivo pessoal
Camila está eufórica. É a primeira viagem à Europa. Ao chegar à capital do país, trafega de ônibus pelas excelentes rodovias em direção a Coimbra. Cidade onde participará, como palestrante, em um congresso. Nos dias de folga, aproveita para conhecer algumas regiões do país. 
Portugal tem excelente malha ferroviária e acatando sugestões segue com seu marido a estação. No local há um setor de turismo e Camila pergunta a funcionária sobre uma cidade pitoresca para visitar. A moça gentilmente indica Aveiro e comenta com orgulho “É a Veneza portuguesa”. Entusiasmado, o casal segue em direção ao setor de venda de passagens.

Após longa espera na fila, o marido chega ao guichê. 
- Senhor quero passagem para Aveiro. 
O funcionário imóvel, não atende ao pedido. 
Márcio repete: 
- Passagem para Aveiro. 
- Para quantas pessoas? -Pergunta o atendente. 
- Duas. - O funcionário continua sem atender a solicitação. 
Márcio, sem paciência, não compreende a indecisão do homem e questiona. 
- O que falta?
- A que horas quer viajar? -Responde o servidor com uma pergunta.  
- No próximo trem. 
A criatura continua paralisada e o brasileiro irritado completa. -Uma passagem para duas pessoas, com destino a Aveiro, no próximo trem.
O inerte servidor conclui:
- O Senhor ainda não disse se quer viajar em trem vagaroso ou trem bala. 
- Márcio solta faísca: 
- Tá bom! Trem vagaroso, por favor. 
Neste momento, o funcionário sem mais perguntas, entrega finalmente a passagem. Camila e Márcio, incrédulos, se entreolham com o bilhete na mão e acenando ao funcionário seguem cantarolando para a plataforma. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

DE CARÁTER

Imagem google
Em direção à sala de embarque de retorno ao seu país, Lídia percebe que havia perdido as fichas de embarque. Comunica ao marido sobre o ocorrido. O companheiro assustado arregala os olhos e juntos voltam, o longo caminho do aeroporto de Lisboa, olhando para o chão.
Encontra um funcionário do aeroporto dentro de um balcão lendo um jornal. Vai em sua direção e desatinada fala “senhor perdi a ficha de embarque e não encontro. O que devo...?” Antes de terminar a pergunta, o homem baixa o jornal até a altura dos olhos e indaga calmamente “E eu com isso?”. Lídia fixa o olhar na cara da insólita criatura. Desorientada e mais estressada, ela visualiza o anticristo à frente.  
Toma outra direção, seguida do esposo. Encontra um funcionário parado na porta da antessala de inspeção de passageiros. Faz a mesma indagação enquanto aproxima. O homem estende os braços impedindo a moça de entrar na sala. Lídia repete a frase. O indivíduo responde “volte à sala de embarque que alguém pode ter encontrado e deixou com a recepcionista”. Ao obter a resposta, reflete imediatamente “Como não pensei? Tão elementar!” Lídia agradece ao anjo e corre ao portão de embarque.  
Os nervos estão estremecidos e a cabeça pesada pelo estresse. Lá está a ficha. Um brasileiro, de caráter, também de retorno ao Brasil, havia encontrado o documento jogado na esteira rolante e, como o costume, entrega na recepção. 



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ÚLTIMA VEZ

Arquivo pessoal
Depois de 46 anos de casados o dia amanheceu cinza para Marisa. A morte chegou sem recado, fulminante. A mulher pegou a agenda com o número dos telefones de seus conhecidos e comunicou a morte do marido. Não haverá mais diálogo, nem desentendimento entre os dois. 
O céu permanecia limpo, a temperatura insuportavelmente quente. Para o velório, escolheu vestido negro com bolsos vermelhos. Não gostava de luto fechado. Seguiu ao cemitério com os filhos. Eles tinham os olhos molhados e o coração destroçado de dor. 
Os familiares chegavam ao velório e choravam pela perda. Marisa calada.  Expressão transtornada. A boca apertada de amargura, os olhos paralisados de ressentimento. 
Jorge vestia terno cinza e gravata vermelha, combinando com os bolsos do vestido da mulher. As rosas amarelas que ornavam o caixão desprendiam leve aroma pelo ambiente. Vistosas guirlandas de crisântemos deixavam o ambiente ainda mais fúnebre.  
Os amigos consolavam Marisa, ela permanecia muda. Até que chegou o sacerdote para fazer as despedidas religiosas. Sentada em uma cadeira, escutou toda a oração e rezou o Pai Nosso em coro com os convidados, sem derramar lágrima. 
Para surpresa geral, Marisa levantou da cadeira, agarrou o defunto pela gravata e sacudiu o homem tão forte que as rosas saltaram para fora, enquanto os convidados agarravam o caixão para o defunto não cair no chão. Aos gritos e raiva nos olhos disse “Como se atreve? Jamais podia ter morrido, agora estou sozinha e sem ninguém para brigar”. Marisa lutou com Jorge pela última vez. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

PERDEU A GRAÇA

Arquivo pessoal
Perdeu a graça, foi a mensagem que escutei de uma amiga. Estávamos em uma cerimônia de casamento pomposa. Os preparativos foram feitos no gramado da mansão. A decoração estava suave, mas com toque de provocação. Tapete branco seguia em direção ao altar, ornado por inúmeras rosas vermelhas. 
Depois do culto fui para a recepção. Reuní com amigas de profissão e juntas sentamos ao redor da mesa redonda. Nossos maridos aprovaram a decisão. O garçom que servia a bebida perguntou o que desejávamos tomar. Os homens optaram por uísque, cerveja e vinho. As mulheres o delicado coquetel de frutas. Conversávamos sobre a festa, a noiva e assuntos de trabalho. À medida que as horas passavam, a conversa tornava mais animada. Acomodamos as  cadeiras para ficarmos mais perto uma das outras. Milena era a mais contente e tagarela. Sorria livre. Nossas gargalhadas eram provocadas pela alegria dela. 
Coquetel chegando e Milena arrebatando. Ela comentou que sua exaltação era proveniente do excesso de bebida. Outra vez retornou o garçom com a bandeja cheia de taças. Todas nós estávamos bebendo, mas o prazer era menor. Então perguntei ao jovem garçom? “O coquetel tem bebida alcoólica?” Ele respondeu: Não. 
Milena, que estava exibindo um sorriso largo, ficou séria, afastou a taça e disse “perdeu a graça”. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

NOSTALGIA

Arquivo pessoal
Caminhar faz bem para o corpo e a mente. Evita câncer, AVC, diabetes,  depressão, protege contra a demência, emagrece e pasmem seca a barriga. O site “minha vida” garante que a caminhada oferece onze benefícios à saúde.
Enfim, caminho todos os dias porque há necessidade e sigo com determinação. Escolho roupa adequada, passo filtro solar, calço meia e tênis, posiciono óculos escuros e chapéu, completo com brinco e batom.
Encontro sementes de árvores caídas no chão prontas para serem pisadas e explodir. Cachorros amarrados pela coleira perambulam com seus donos. Alguns até recolhem as fezes dos animais. Outros deixam para lá. Andando, percebo pessoas, às vezes interrompo para conversar.

D. Izabel, uma senhora viúva de 90 anos é magra, tem cabelo chanel e gosta de usar vestidos longos, que diz parecer camisola. Passeia todos os dias pela  calçada adequada aos idosos. Segue amparada pela acompanhante. Quando a encontro chama para dialogar. Um dia fui convidada a visitar seu lar.  Mostrou, com orgulho, os aposentos da casa, fotos dos filhos e netos.  É lúcida, mas não confia na memória e os comentários que faz certifica com a cuidadora “não é isso Tereza?” Que sempre confirma. Confidencia sobre as ex amantes do marido. Em seguida garante que, apesar da traquinagem era um bom homem e a deixou financeiramente muito bem. Segue narrando sobre o passado. Esteve na Europa, em Roma. Visitou o Vaticano “quando entrei no santuário o papa pediu para eu cozinhar. Então fui”. Desta vez tem convicção e não pergunta a Tereza. No terreno da casa há todo tipo de fruta e comunica aos passantes que entrem para apanhar. D. Izabel é mulher solitária. Interrompe porteiros, jardineiros e faxineiros, que estão em serviço, para ter com quem falar. Os moradores estão na correria e precisam seguir caminho porque trabalham.  As amigas já faleceram e há poucas pessoas com quem conviver. D. Izabel reproduz sua vida com nostalgia e vê poucas oportunidades no amanhã. 

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

SEQUESTRO

Meu nome é Pedro. No pequeno recinto que habito com outros colegas, sobra tempo para pensar. Escondidos dos guardas, compartilhamos um celular. Falamos com namoradas, esposas, filhos, amigos e advogados. Também fazemos transações telefônicas escolhidas ao acaso. 
Uma noite ligamos para uma casa.  A dona atendeu. Comuniquei  que a filha havia sido sequestrada. Ao fundo, um som confuso dificultava o entendimento. Precisei repetir a mensagem várias vezes.  A senhora, assustada, pediu um minuto para tranquilizar. Nunca tive muita paciência e transferi o celular a um camarada que com admirável esperteza reproduziu a voz de uma mulher em desespero.  Aos prantos, a senhora, conversou com quem pensava ser a suposta filha. O farsante suplicou que atendesse a solicitação do homem, caso contrário corria risco de vida. 
 Retorno ao celular e apresento a exigência. A mulher avisa que precisa comunicar ao marido e solicita que ligasse mais tarde.  Trinta minutos, tempo suficiente para transmitir o determinado. 
No relógio acompanhei, com impaciência, os momentos passarem. Completo a ligação. A mulher atende. Exijo o cumprimento da solicitação. Calmamente ela fala “senhor passarei o telefone para meu genro. Um momento”. Escuto a voz imponente do homem “Alô! Aqui é o delegado Gustavo”. Assustado com o imprevisto espatifo o celular na parede da cela e levo uma surra dos camaradas. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

SEM NOÇÃO

Arquivo pessoal
Brasília é uma cidade de clima tropical. Verões chuvosos, umidade do ar de 70%. No inverno é seco e cai para 13%. A temperatura é sempre agradável. Nos meses de setembro e outubro a poeira se eleva nas alturas tingindo o céu de carmim e o mato do cerrado queima com desenvoltura. Algumas pessoas têm dificuldades respiratórias e consultam médicos. Outros frequentam os hospitais para fazer nebulização. 
Na época da seca a capital fica linda. Os ipês abrem suas flores e enfeitam a cidade de rosa, amarelo, branco e roxo. As pessoas sacam fotos do colorido majestoso e compartilham, com orgulho, nas redes sociais. O arco-íris dos ipês faz contraste com a grama seca que permanece bege.
Com a umidade muita baixa, os carros ficam envoltos por uma fina camada de poeira e os veículos necessitam ser lavados com maior frequência. Precisava lavar o meu com urgência. Cheguei ao posto e permaneci na fila. Estranhei. O lavador estava desocupado e o carro a minha frente fechado. Perguntei o que havia com o lava jato. Ele respondeu que não podia trabalhar porque o dono do carro estacionou, saiu e ele desconhecia o paradeiro do homem.
Fiquei irritada, tinha pressa. Iria almoçar para depois trabalhar. Buzino para chamar atenção do responsável pelo automóvel. Não apareceu. Tentei mais duas vezes. Ninguém. Desci do carro e tirei uma foto. Depois, peguei o batom da bolsa e escrevi no para-brisa do veículo estacionado “sem noção”. 
Segui meu destino refletindo sobre o acontecimento. O homem é um folgado? Com cólicas intestinais seguiu em direção a um banheiro? Ou aconteceu o pior? 

sexta-feira, 31 de julho de 2015

NA CALADA DA NOITE

Arquivo pessoal
Raquel, mulata de cabelos encaracolados, ambiciosa e aluna aplicada do curso de enfermagem. Estuda a noite porque trabalha no período diurno. É responsável pelas mensalidades da faculdade e contribui com as despesas domésticas. Ônibus coletivo é o meio de transporte. Após longa jornada, chega à casa esgotada. Saúda os familiares, toma banho morno, faz lanche e vai dormir.  
Na madrugada de segunda-feira acorda assustada com forte barulho. Seu pai acende as luzes e segue para a porta da cozinha. A mãe vai em direção à janela da frente. Ambos acreditam ser um intruso. Ninguém tem coragem de sair da casa. A balbúrdia cessa e a família retorna ao aposento. O tempo de silêncio foi curto. Assustados com a algazarra retornam a sala e sussurram que estão apavorados. O avô de Raquel decide sair para o jardim. O filho segura seu pijama para conter a ousadia. 
A algazarra é no telhado. Ladrão impossível, porque a tática de invasão é silenciosa. O temor avança e Raquel tem brilhante ideia. Liga para delegacia. 
Amanhecendo, chega à viatura da polícia. Todos ao mesmo tempo querem dar declaração. O agente pede silêncio e com calma escuta o depoimento. Solicita uma escada. Procura por vestígios e encontra penugem de animal e um pedaço de carne salgada dentro de uma gaiola. O avô, as gargalhadas, confessa ter colocado o petisco para salgar no sol, acreditando que o telhado era local seguro.

sábado, 25 de julho de 2015

FONTE DO LEITE

Arquivo pessoal
Angélica convida os amigos para churrasco em sua casa. Era festa de batizado do filho de seis meses. Aos convidados prometeu fazer deliciosa sobremesa. A manhã transcorre serena e os preparativos estão de agrado. O marido envolvido com o tempero da carne e arrumação das mesas ao redor da piscina. Ela prepara arroz a grega e salada de maionese. Lembra de fazer o pudim e  separa os ingredientes. Leite, leite condensado e ovos. Na geladeira e despensa faltava o leite.
Corre em direção ao marido e solicita que vá ao comércio comprar o ingrediente. Prontamente atende ao pedido da mulher que foi pegar a chave do carro, mas não achou.
Rapidamente encontra alternativa. Sem avisar o marido, vai ao quarto e bombeia de seu busto 200 ml de leite materno. Mistura os ingredientes no liquidificador, caramela a forma e assa o pudim em banho-maria.
Os convidados chegam com presentes para o bebê. No som toca axé e o cheiro atraente da carne na churrasqueira perfuma o ambiente. O grupo conversa sobre amenidades, porque assuntos sobre futebol e política são vetados pelas mulheres. Ao término do almoço Angélica traz o pudim. Sem constrangimento serve os convidados, que após degustarem a saborosa sobremesa descobrem a fonte do leite.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

OLHOS DE JUDITE

Arquivo pessoal
Judite trabalhava muito há 23 anos. A poupança engordava simultânea aos plantões noturnos para construir a casa dos sonhos. As despesas do lar eram de minha responsabilidade. Após alguns anos, compramos terreno, ideia adiada várias vezes por questões financeiras. Sempre que havia disponibilidade, ela ia ao terreno regar o pé de pequi e jabuticaba, que plantou ao comprarmos a terra. 
Dinheiro para contratar arquiteto era escasso. Soube por nosso filho adolescente que há programa na internet com distintos estilos de casas. Juntos escolheram a que cumpria as necessidades da família. Enquanto isso solicitou ao banco empréstimo para somar ao da poupança. Decidiu que era hora de concluir o sonho. Iniciou a compra do material de construção e contratou mestre de obra para fazer o alicerce.
Diminuí a contribuição mensal porque fiquei desempregado e passei a fazer bicos. O trabalho exigente no hospital a solicitava em demasia, aumentando o estresse. Dores de cabeça acompanharam a vida diária de Judite. A coluna queimava com o peso das responsabilidades no emprego e a construção da casa. Usava como alívio a automedicação. Apesar dos contratempos com a saúde, seguiu firme em seu objetivo. 
O tempo foi suficiente para a jabuticabeira dar flor, o pequizeiro abrigar do sol a casinha do cachorro e a obra terminar. Tirou férias e iniciamos a mudança. Judite estava empolgada com a casa cheirando tinta fresca. Enfeitou com capricho a nova residência para as festas de final de ano. 
O descanso terminou e ela regressou ao trabalho. As dores de cabeça intensificaram. Deixou os plantões nos finais de semana e feriados por recomendação médica. Um dia, pela manhã, enquanto trocava de roupa no vestuário do hospital, sentiu o mundo girar e desmaiou. Transportada as pressas até a emergência, duas horas depois Judite foi a óbito.
Fiquei solitário na dor. Desamparado com a perda, reagi para cuidar do filho. Após dois anos encontrei em outra mulher, os olhos de Judite. Casei e sigo habitando a residência dos sonhos.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

IH DOUTOR! ESQUECI.

Seu nome tem origem inglesa. O temperamento é impulsivo e permanece inquieta quando precisa tomar decisões. Recentemente completou 60 anos e ficou viúva a pouco mais de um ano. Atualmente dedica sua vida a desfrutar dos filhos, ambos médicos assim como foi o pai e avô, e do neto. Aproveita o tempo livre para viajar pelo Brasil. Viagens longas a deixam ansiosa. O guarda-roupa tem estilo próprio. Vive a sua maneira e rechaça com veemência os que criticam seu estado de espírito.
As redes sociais são companheiras nas horas de solidão. Posta poemas de Drummond, jardins floridos, imagens exuberantes de castelos, museus, objetos de artes, fotos pessoais da família e de si mesma. Comenta sobre tudo o que a irrita e a língua é afiada quando o assunto é saúde e educação.
Acompanho diariamente os comentários porque somos amigas do Facebook. Um em particular chamou atenção. Comenta que estava atordoada com a quantidade de pessoas aguardando o atendimento em clínica particular, que recebe convênios. Enquanto isto observou particularidades: “a única diferença da clínica para o SUS é o ar condicionado e água gelada para arrefecer o calor e secura da garganta”. Outro detalhe, sem comparação com o SUS, foi o acolhimento do médico. Ao ser consultada, o clínico indiferente leu os exames, repassou os resultados e interrogou sobre a saúde familiar. Kate para ser gaiata, quebrar o gelo e ganhar a simpatia do médico comentou: “Um horror! Minha mãe e meu tio enfartaram. Meu irmão faleceu aos 57 anos de aneurisma. O esposo... Ih doutor! Esqueci. Marido não é parente”. Ainda sisudo e olhar apático, o médico encerrou a consulta com um amém.






quinta-feira, 2 de julho de 2015

DAIANE, CAMUFLADA


Essa é uma história de encontros e desencontros, como tantas outras que você conhece. Ambos eram casados. Ele estava aborrecido com o matrimônio, emprego e profissão. Queria fazer mudanças, mas tinha medo de arriscar. De um lado, segurança adquirida ao longo dos anos, do outro insatisfação.
O computador permitia fantasias, viagens duradouras e seguras. Entrou na sala de bate-papo e lá encontrou “Daiane, a solitária”.  Protegidos mantiveram contato por três meses. Ela desde o princípio omitiu nome, endereço, profissão. Mentia sobre sua vida particular. 
Ele falava sobre sua vida. Contava estripulias e sobre viagens. Particularidades evitava mencionar. Tentou conhecer Daiane, mas ela recusa os convites. Tinha compromissos com a família e queria permanecer no conforto do lar. Seguia vida branda. 
Em um feriado, enquanto o marido atende ao telefone, observa o computador dele ligado. Senta, abre as janelas do site e reconhece o diálogo para “Daiane, a solitária”. O homem romântico, que a conquistou por três meses no site de relacionamento, era o marido. Ele observa a mulher na página da web e fica impactado. Aproxima e dá explicação, mas Daiane camuflada esconde o outro lado da versão.   

quarta-feira, 24 de junho de 2015

MISTÉRIO DAS FLORES

Meu orquidário
O dia dos namorados é uma data em que se comemora a união amorosa. Nas redes sociais acompanhei trocas de mensagens com juras de amor, dedicação duradoura, de eternos namorados, quero ser seu colo e tantas outras tão comoventes que dá vontade de gemer.  
Li uma mensagem que chamou minha atenção. Uma jovem agradecia o ramo de flores que recebeu, pela manhã, de um anônimo. O encarregado pela entrega foi o porteiro do prédio onde reside, mas o ramo chegou pelas mãos do florista. Sem cartão assinado e selo identificando a floricultura, estava difícil o reconhecimento de fã ardoroso. 
Pensou em conhecido do trabalho, do clube, da academia ou outra criatura ainda mais discreta. Do marido tinha certeza que era improvável. Ele não valoriza presentes de flores, prefere que fiquem perfumando o jardim. Ao caminhar pela rua olhava para os homens tentando identificar o autor da impetuosidade. Passou o dia matutando sobre o admirador secreto, que esqueceu de festejar a união com o marido. Incomodado, o esposo ficou indignado com a desatenção da mulher. 
A surpresa foi tão adequada para a ocasião que a jovem deixou de reparar na caixa embalada em papel de presente e adornada com laços de fita de cetim, que acompanhava o arranjo de flores. O presente ficou abandonado no canto da sala até sua descoberta. Sentada no chão, abriu a embalagem com impaciência. Aguardava descobrir o mistério. O conteúdo era ousado e inquietante. Imediatamente, Rosa entra nas redes sociais e escreve “agradeço ao admirador as flores enviadas. Só gostaria de entender o porquê das velas, da galinha preta e da farofa?”. 

sábado, 13 de junho de 2015

DANÇA CINDERELA

Um jovem casal marca data do casamento. Combinam sobre o bolo, bebidas, doces, salgados e decoração. No dia marcado, a noiva entra majestosa no tapete vermelho sorrindo aos convidados. Quando a cerimônia religiosa termina seguem para a lua de mel. 
No retorno, Neusa informa que assumirá emprego como recepcionista de consultório. O marido, engenheiro formado na USP, discorda da decisão da mulher. Desocupada perambula de carro pela cidade, vai ao shopping, visita amigas. Neusa tem vida folgada. 
A vida segue o rumo. Um dia o marido aproxima de Neusa e sem constrangimento pede divórcio. A separação é inevitável. No tribunal chega a  petição por mãos hábeis do advogado. O cônjugue solicita divisão bens e nega pensão a mulher, que fica desamparada.  
A solução chegou pelas mãos do juiz.  Neusa receberia pensão por dois anos, tempo suficiente para arranjar emprego e fixar profissionalmente.  Sem curso superior, a opção foi trabalhar como caixa de supermercado.
Para diversão prefere festas noturnas. No baile conhece modesto eletricista e excelente dançarino. Nos finais de semana, Neusa se transforma em cinderela. O casal encontra no clube e dançam noite inteira como apaixonados. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

MÉRIDA, CIDADE PRETENSIOSA

Madrid - arquivo pessoal

Este ano viajei no meio do semestre, fato quase impossível. Nesta época a faculdade está a todo vapor, mas como consegui adiantar o trabalho, segui para Espanha. Pela primeira vez participo de excursão. Gosto de programar os lugares a conhecer, os horários e transporte. Inicialmente pensei em cruzar o país de trem, mas os percursos atendidos pela malha ferroviária não satisfaziam minhas necessidades e do Marco. Fomos à empresa de viagem buscar orientação e nos ofereceram um pacote por Andalucía. Aceita a proposta, acrescentamos três dias no final da excursão para conhecer cidades pitorescas próximas a Barcelona, por nossa conta. 
Para a bagagem decidimos usar mala pequena, porque em uma das viagens, Marco voltou com dores nos ombros o que ocasionou três meses de fisioterapia. Coloquei blusas em liganete, calças jeans, sapa tênis, artigos de higiene e poucos badulaques para enfeitar. No dia marcado seguimos ao aeroporto. Depois de 3 horas de conexão em São Paulo, embarcamos no vôo a Madri onde me senti uma sardinha em lata. Além do desconforto das poltronas, o clima dentro do avião era de aproximadamente 15 graus. Após 10h30min. de viagem estávamos exaustos, mas Madri receptiva.
Tábua de sal grosso 
No hotel deixamos as malas no quarto e fomos almoçar. Satisfeitos com o cordeiro assado, servido em tábua de sal grosso do Himalaia, ficamos a passear pelas ruas da capital, que não dorme. 
Voltamos ao hotel porque a guia turística havia marcado reunião com os 16 integrantes da excursão, todos adultos. Gaúchos era a maioria, seguidos de mineiros, goianos e eu a única carioca. Apresentações e recomendações transmitidas, voltamos às ruas da capital para aproveitar as últimas horas de visita. Na manhã seguinte, depois do café matinal, partimos em direção a Sevilha, com uma parada em Mérida. 
Chegando a cidade história de Mérida almoçamos e fomos passear para conhecer as ruínas. Primeiro o imponente e mais alto aqueduto do império Romano construído em meados do século I e II a.C. A descrença popular pela magnitude da obra denominou a estrutura de Aqueduto dos Milagres.
Depois o anfiteatro romano inaugurado no ano 8 a.C. e que esteve enterrado por centenas de anos. Era destinado a lutas entre gladiadores, com animais ferozes e as corridas de touros.  Nunca havia visitado um anfiteatro que tivesse esse fim. Homens destemidos ou movidos pela ambição a desafiar touros e leões. Por último, o teatro romano. Projeto ambicioso que abriga soluções arquitetônicas, decorativas e construtivas adaptadas durante as inúmeras alterações e remodelações sofridas ao longo das décadas e governos. Mas Mérida é movida pela pretensão. Ainda escava seu terreno em busca de outro conjunto arqueológico nas proximidades do anfiteatro e teatro romano. 
Aqueduto - arquivo pessoal
Anfiteatro - arquivo pessoal


segunda-feira, 25 de maio de 2015

SAUDADE E PESAR

Arquivo Pessoal
Havia tomado café da manhã e permanecia tranquila à mesa lendo, no celular, as mensagens do dia. O telefone toca. Era minha mãe: “tenho uma notícia muito ruim para dar”. Enquanto interrompe o aviso para conter a emoção, meus pensamentos vagueiam.  Segundos depois, anuncia: “a Cristina morreu”.  
Semana passada papai e meu irmão estiveram no Rio para o sepultamento de outra parenta. Aproveitaram para almoçar com tia Cris e tio Hamilton. A dupla sempre foi presença marcante na família. Felizes compartilhavam novidades sobre acontecimentos diários. Apesar de frágil saúde, tia Cris cuidava de si e do marido que apresenta distúrbios fisiológicos graves. 
E eu que cheguei de recente excursão, engato em nova viagem que preferia ter outros motivos para visitar. Atualmente para passeios com meus pais, eu e meu irmão, precisamos acompanhar. Eles têm dificuldade de locomoção e a assistência é inevitável. Passagens compradas e malas arrumadas, seguimos para o aeroporto com destino ao Santos Dumont. O avião sobrevoa a Restinga da Marambaia, Sepetiba e Pedra de Guaratiba. Segue pelo Recreio e Barra da Tijuca. A linda visão do espaço carioca dispersa os pensamentos fúnebres e me perco rememorando brincadeiras de infância.
Do aeroporto seguimos para a casa dos tios.  A emoção nos silencia. Encontrei abatimento nos olhares do meu tio, filhos, noras, genro e netos. Deparei também com lembranças e saudades dos primos(a) que há anos não revia. Depois de adultos tomamos rumos diferentes e a distância impossibilitou encontros mais frequentes. Observávamos para reconhecimento das fisionomias, enquanto abraços saudosos e de pesar eram trocados. Após a euforia do encontro, conversamos sobre a convivência em Brasília quando adolescentes. Relembramos a escola, a quadra em que moramos, a poeira vermelha que sobrevoava o céu e o aeroporto, local ímpar, onde os primos, meu irmão e eu trabalhamos.   
Em determinado momento, fui convidada a dividir uma história familiar. Entrando no quarto percebi o neto André, de 21 anos, pegando a caixa de memórias da tia Cris com fotos e cartas. Revi a minha festa de debutante que compartilhei com a prima Cristininha que fazia oito anos; e o aniversário de 90 anos da vó Maria. As cartas dos filhos quando crianças, com mensagens de amor, foram mantidas. Os olhares dos irmãos e o meu cruzaram. Surpresos, com os arquivos conservados, leem em silêncio as comovidas palavras infantis à mãe amorosa.
Com carinho,   

quinta-feira, 30 de abril de 2015

ÁVIDO CUPIDO


Alguns relacionamentos são perturbadores. Brigas, pontapés e ofensas fazem parte da dinâmica do lar. Mas Thaís e João Luiz formam um casal amoroso desde o princípio. Este mês completaram quinze anos que vivem juntos, oito oficialmente. Ela reconhece que o marido é cúmplice nos júbilos e percalços da vida.  Afirma que se hoje é fortaleza foi porque aprendeu com ele sobre perdas e ganhos.
Conheceram-se no trabalho. João era o chefe e fazia poucos esforços em suas conquistas amorosas. Afinal, eram muitas mulheres interessadas em homens com seu perfil.  Thaís sabia disso e afastava da concorrência. Discreta observava João, mostrando desinteresse.
Um dia ele tomou coragem e fez o convite que há dias teimava escapar da garganta. Sem encenação perguntou “quer sair comigo hoje para jantar”? Thaís se surpreendeu com o convite embora conhecesse a fama de querido que envolvia o chefe.  Com o mesmo supetão da pergunta, João recebeu a resposta promissora. Ela queria mudanças em sua vida e apesar de encafifada com a ousadia do chefe, pressentiu a oportunidade no convite.
Thaís ao chegar a casa começou a experimentar algo estranho. Olhou o reflexo no espelho, girou em torno de si e reparou que estava gorda, feia, com fisionomia cansada e cabelo desgrenhado.  Para emagrecer o tempo era curto. Decidiu que o salão de beleza seria um excelente coadjuvante da esquisitice. De última hora fez pé, mão, maquiagem e escova, após cortar 32 cm de cabelo.
A noite aproximava.  Thaís após transformação era outra mulher.  Perfumada e confiante aguardou a chegada do pretendente, e o ávido cupido com golpe encantador cravou sua seta no coração do chefe.  

sexta-feira, 24 de abril de 2015

MÃE DESOLADA

Na emergência de um hospital encontrei casais e famílias preocupadas com a saúde de parentes. Fisionomias cansadas, desanimadas, algumas sem esperança.  Uns em consultas rápidas, outras em direção à internação.  Bebês soluçavam ora com fome, ora com dor.
A mãe adolescente estava com as filhas. A criança de colo tinha problemas respiratórios. Ao mamar no peito, faz esforço extra para controlar a respiração e sucção. Fica impaciente, geme, mas não desiste da alimentação. A mais velha, com três anos, tenta acalmar a irmã. Acaricia cabeça, cabelos, murmura palavras doces e canta “galinha pintadinha”. Quando a irmãzinha acalma ela perambula pelos corredores, contando e saltando os quadrados do piso. Permanece alegre e distraída no mundo infantil. 
A mãe das crianças exausta exibe olheiras de amargura. Em conversa no telefone do hospital, comenta “cuidar de duas não é fácil”. Ao mesmo tempo   em que segura o fone, limpa a coriza da neném com os dedos. Desamparada carrega a filha no colo enrolada em uma manta que arrasta pelo chão durante idas e vindas aos laboratórios de exames. Deixou para trás focos de infecção. 
À avó que não sabia como cuidar das três, netas e filha, segue automática, passos e ordens. 


quinta-feira, 16 de abril de 2015

EXCURSÕES CULINÁRIAS


                Imagem do google
Celeste está fazendo excursões pela cozinha e tem aceitado o desafio com diversão. Aprende a descascar e cortar cebola com arte e eficiência. Sábado fez macarrão de uma panela só. Excelente resultado obteve, porém prefere de duas panelas. Uma para o macarrão e outra para o molho. 
Domingo de Páscoa convidou familiares para almoçar e topou a provocação, fazer bobó de camarão.  Receita há em sites da internet. Algumas pessoas disseram “difícil” outras “trabalhoso”. Como consultora, a mãe que já cozinhou muito bem.  Atualmente, fica na administração. 
Celeste tinha tempo suficiente para preparar o prato. Separou os temperos e cortou tudo como manda o figurino. Pegou o camarão cinza já descascado pela Rosana, e surpresa, descobriu que o intestino do crustáceo permanecia. Passou raiva. Impossível de seguir em frente. Parou o que estava fazendo e durante uma hora e vinte minutos limpou um por um. Dores no pescoço e nas costas acompanharam a tarefa árdua. Almoço atrasado. Após a limpeza do camarão, passa para etapa seguinte, temperar e refogar. 
Teve colaboração do marido. Enquanto cozinhava o aipim Mário foi buscar, na casa da mãe, leite de coco e moedor para passar a mandioca. Celeste pede socorro à filha, mas ela preparava os chocolates da sobremesa. A única solução foi telefonar aos convidados e pedir paciência. Seguiu na atividade, agora sem pressa. Mistura ingredientes, mexe panela, prova o sabor da alquimia e percebe que o resultado esperado brotava no aroma envolvente. 
Os familiares chegam. A filha com chocolates decorados, o restante com apetite. Antes de servir aos convidados, pede a mãe para provar à culinária. Caprichosa, adornou o prato com os componentes. Alguém comenta “vai bancar Ana Maria Braga”. A ansiosa Celeste, que precisava da aprovação da chef, observa a mãe exclamar “hummmmmm”. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

IMPRUDÊNCIA E EMOÇÃO


Um barulho ensurdecedor assusta os que ocupavam a sala de visita. Olhares cruzam e a conversa volta ao ritmo normal. O trovão derrubou a luz, mas voltou. O vai e vem da falta de energia repetiu três vezes. Decisão geral de desligar as tomadas dos eletrodomésticos. Os que estavam fazendo a sesta acordaram. 
A reunião familiar seguiu até às dezoito horas. Alguns convidados foram embora no pico do temporal. Tinham compromisso. Abriram o portão da garagem manualmente. Pouco tempo depois, celular avisa que há mensagem “caiu um raio no seu condomínio. Duas pessoas morreram. Pai e filho”. Domingo de Páscoa não é dia para tragédia! 
Imediatamente pensei na mulher e mãe que perde inesperadamente pessoas de convívio próximo, amados. Entrei no site indicado e soubemos dos acontecimentos. O raio arrebentou o fio de alta tensão e os pneus do carro incendiaram. Os homens tentavam salvar o veículo do fogo que alastrava. Morreram eletrocutados. Ficamos paralisados diante dos fatos. 
Desconheço os motivos para reagirem de forma tão insensata. Mas, seguramente a emoção, instinto ou pulsão que nos protege e também aos bens, foram mais fortes que a prudência. 
À noite, saí para caminhar e segui em direção ao infortúnio. A lua cheia iluminava a escuridão. Moradores do condomínio compartilhavam, em silêncio, a dor familiar. A penumbra que envolvia a casa refletia o ânimo dos residentes.  Marcas ficarão no asfalto, nos solidários e na família.   

quinta-feira, 2 de abril de 2015

ALTAR MOR: PRETO NO BRANCO


Pirenópolis nasceu de um arraial minerador no século XVIII. É cidade do interior goiano, pitoresca e atraente, fincada aos pés da Serra dos Pireneus. Atualmente, patrimônio histórico nacional. Coloridas casas de adobo encantam visitadores. Expostas nas janelas, namoradeiras de argila com olhares traiçoeiros, seduzem passantes. 
Pela sexta vez, passeio pela charmosa cidade, escutando histórias da sua gente. Desta vez, a curiosidade seguiu rumo religioso.  Na Praça do Coreto, entrei em loja de artesanato e adquiri flores de fita. Depois estive em café onde abrandei a fome. Enquanto aguardava o lanche, observei particularidades da decoração. Lustres antigos de porcelana e ferro, lavatório, portas, teto, canoa de madeira pendurada na parede.  Fazendo parte do arranjo, a história da capela Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, erguida nas horas de folga dos escravos, em 1746 e 1757. Neste século os negros eram proibidos de frequentar a igreja dos brancos. Tinha uma torre, porém mais tarde, outra foi acrescentada. Erro na construção abalou a estrutura e no ano de 1944 a capela foi demolida. Preciosidades religiosas que a ornavam foram espalhadas pelas demais igrejas da cidade. 
No dia seguinte visitei a igreja Matriz, Nossa Senhora do Rosário, essa destinada aos brancos. Em 2002 sofreu grande incêndio, que de acordo com a população, foi criminoso. Moradores acreditavam que os responsáveis eram mendigos revoltados. Escutei de um habitante a seguinte história: “na madrugada um carro parou na janela, que havia sido arrombada,  situada na parte detrás da igreja. Peças religiosas ornadas a ouro foram recolhidas pela quadrilha especialista em roubo a santuários. Fugiram, porém para encobrir o pecado, atearam fogo na Matriz.” Noite inteira ardendo em febre. Um mês depois, mistério desvendado. Tempo suficiente para fuga e desmanche das relíquias. Paredes de barro cru em taipa de pilão resistiram à intempérie. Madeiras do telhado, danificada pelo cupim, sucumbiram à ambição. O nobre órgão tocado por gerações virou cinza. O sino derretido pelo calor do fogo é peça de exposição.
Sentimentos abafados pela perda irrecuperável foram substituídos pela restauração. Paredes foram reforçadas.  Órgão, sino e altares laterais que compunham a história religiosa, insubstituíveis. Para o altar mor uma inspirada solução. Duas igrejas destruídas, na mesma cidade, com nome da santa de devoção. Dos pretos, estrutura abalada. Dos brancos pela ação do fogo. O altar da capela dos pretos, preservada. Dos brancos, fundida. Humildemente, por ironia do destino, o altar mor de rara beleza, da igreja dos pretos passou a ocupar a igreja dos brancos.  Em Pirenópolis, brancos e negros, convivem em harmonia. 

sexta-feira, 27 de março de 2015

NOME DE BATISMO


Em direção ao trabalho, uma mulher grávida, seleciona mentalmente nome de batismo para o bebê. Em caso de menina, denominações de época, Glória, Lucia, Celina, Lourdes, Márcia e Dalila.  Segue em busca de nomes de menor preferência Eugênia, Consuelo, Custódia, Clementina. Escuta sugestões. Composto seria mais indicado e melhor arranjo, Maria. 
Legal! Maria Eugênia, mas muito presunçoso. Eu-gênia, sabe-tudo, sábia, tem lâmpada mágica. Não queria provocar antipatias e imediatamente desce da arrogância. A mãe quer nome que reflita alegria plena. Bingo! Letícia. 
Os pais do bebê dialogam sobre a decisão. Ele prefere Welmar. Uniria três letras do nome dele “wel”, as outras da mulher “mar”. A criança deve ter rebelado, porque a grávida fica contrariada e rebate, não. A procura pelo nome ideal continua. Finalmente duas decisões foram compartilhadas pelo casal. Seria Letícia, caso a filha não nascesse em maio. Grandes chances! Onze meses, junho a abril, para a rebenta chegar. 
Nascendo em maio, Maria. A bolsa amniótica estourou justamente no mês de Nossa Senhora. Outro precisava compor. Que tal Lucia? Resultado final: Maria Lucia, sem acento, que significa “luz da manhã”. Chegou exatamente as 6:30. Hoje ela recusa acordar no alvorecer. 
Letícia, coitada, ficou vendo navios. Escolha de nomes é fato sério e não dá para abusar. Atualmente, brincam em família. Caso o nome da menina fosse Welmar, o irmão deveria se chamar Marwel, porque infortúnio isolado é bobagem. 

quinta-feira, 19 de março de 2015

AMANTE FAVORITA


Estive em um encontro com jovens jornalistas. O bar cheio e barulhento dificultou ouvir a pessoa ao lado. Mas, depois me acostumei e fiz barulho igual. Para comer pedimos iscas de filé, caipiroska e água. Os assuntos, mais diversos. Conversamos de trabalho, filhos, comida, viagens, problemas de saúde. 
Em certo momento um jovem presente, André, foi solicitado. Queríamos entender por que quando um amigo ia ao fumódromo, ele seguia junto. Chamaram. Disse que parou de fumar há um mês. Que gosta do cheiro da fumaça. 
O prazer está nas coisas mais simples da vida. Em comer um chocolate, viajar, comprar, jogar, sexo, enamorar... e fumar. Ernesto, disse que bom é comer uma coisa doce e gordurosa, como sorvete. Sua expressão facial concluiu a satisfação. As preocupações e tensões ele alivia correndo nas vias do parque e o encanto é recuperado. 
André tem dificuldade para respirar. Já fez inúmeras cirurgias, porque nasceu com uma disfunção. Por isso necessita urgente, romper com esse prazer de sua vida. É uma decisão difícil em seu entender. Respirar ou fumar? Como paliativo aspira a fumaça solta pelo outro. Viajou em janeiro pela América Latina. Conheceu Peru, Paraguai, Bolívia e Argentina. “Não fui só. Fiz o trajeto junto com uma caixa de cigarros, minha amante favorita”. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

BATE DENTRO DO PEITO


Um menino que gostava de escutar corações observou que um pulsava fora do ritmo e comentou “este coração bate diferente”. A mãe preocupada examinou o batuque e imediatamente providenciou encaminhamento da criança ao médico. 
Diagnóstico: prolapso da válvula mitral proveniente de febre reumática. Nada muito preocupante, mas como prevenção o médico anunciou “nenhuma atividade brusca”. Esta menina não obedeceu e seguiu brincando de pique-pega, pique-esconde, bandeirinha, pulava corda, amarelinha, subia nas árvores e andava de bicicleta. Teve vida de criança em casa e na rua. 
Todos os anos fazia exames cardíacos. Cresceu. Na adolescência era proibida de fazer educação física na escola. Solitária esperava sentada o tempo da aula passar. Até que um médico não encontrou dano no coração e liberou o exercício. Virou adulta, namorou e casou. Como a vida não é linear, um dia ela descobre que seu coração estava descompassado, novamente. Para sua surpresa, a sensação desagradável foi confirmada, retorno do prolapso. Nesta época soube que era problema congênito.  
Em ambas gestações fez acompanhamento médico. Tudo correu sem sobressaltos. Seu coração batia, mesmo não estando em perfeitas condições. Fazer exames cardiológicos fazia parte do cotidiano semestral. Aos 47 anos anunciaram “precisa, urgente, fazer cirurgia cardíaca”. A válvula mitral estava flácida. Procurou outro especialista porque acreditava na sorte. Repetiu  exames e soube que a situação não era crítica.  
A vida seguiu seu ritmo. O médico especialista em arritmia ficou de olho na evolução da velha válvula mitral. Ou será degradação? Anunciou, “agora é o momento de fazer cirurgia”. Os olhos marejaram de preocupação e medo. O médico pacientemente acalmou, “você tem excelente saúde, não há motivo para preocupação”. Ela tinha 59 anos. Para fortalecer a autoestima e tomar decisões convenientes, recorreu a psicoterapia. Esgotou o assunto e saiu fortalecida. Hoje, 11 de março, completa dois anos da intervenção. A válvula suína tem prazo de validade e precisará ser trocada. Quando? Ninguém sabe. 
A menina travessa, que também gostava de boneca, sou eu. 

sexta-feira, 6 de março de 2015

MÁSCARA INDIGESTA


Há três anos marcou um exame, todavia faltou. Desta vez, ansiosa enfrentou a máscara que promete um sono tranquilo, sem apneia e roncos. Deveria passar a noite na clínica. Antes de começar o preparo, já pedia a Nossa Senhora Aparecida para retira-la dali. A santa estava em sono profundo, e quem chegou no lugar foi a técnica especialista com a temida máscara auxiliar do sono. Trouxe esparadrapo anti-alérgicos, eletrodos e vários fios para fixar no rosto da Luzia. A imagem refletida no espelho parecia de astronauta pronta para roncar em outros ares. 
A parafernália foi preparada e ela arrumada para dormir. Ficou distraída coçando o nariz e escutando o barulho do ar que escapava da máscara, para ela, indigesta. As horas arrastavam, o sono dispersava. Inquieta, Luzia orava para a santa de devoção. 
Envolvida em preces, adormeceu profundamente. Depois de três horas, inesperadamente, acorda e grita pela técnica. Enquanto isso recorda o sonho inquietante. “Fugi da clínica cheia de fios e volto para uma casa estranha. Tomada por culpa, telefono ao consultório avisando o retorno para tirar os fios da cabeça, do rosto e das pernas. Não sumi”, adverte. Atordoada mistura realidade com ficção. 
Finalmente a moça aparece e Luzia solicita a retirada da parafernália, sem concluir o exame.   O marido chegou para o resgate. “Senti alívio, liberdade e queria voar. Saí tranquila com uma certeza, máscara indigesta, jamais”.  

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

NAS PAREDES DO SENHOR


Não foi a primeira vez que o casal de idosos viajou em grupo. Passearam pelo Brasil, Europa e ainda por caminhos mais áridos como Egito, Israel, Jerusalém. Tomaram banho no rio Nilo, atravessaram o deserto, andaram nas corcovas de camelo... e quase chegaram em Missões. Mas a viagem acabou em rasteira e decepções.  O organizador? Religioso de confiança. 
As malas estavam fechadas, o que ficou para trás, organizado. Às oito horas da noite, da véspera, um telefonema “Olha! A viagem de vocês foi cancelada”. O casal ficou desorientado e não acreditou. A noite de sono que deveria ser tranquila e reparadora, virou pesadelo. A filha desconfiada foi atrás de respostas. No aeroporto, descobriu que não haviam reservas. Ligou para o hotel e a recepcionista não confirmou as estadias e nem o réveillon. O tour nunca existiu. Não havia pacote, somente engodo.
A verdade, o casal desconhece porque a filha poupou. Mas, já que foi cancelada a viagem, solicitaram a devolução dos pagamentos. Desculpas esfarrapadas foram arremessadas aos céus. Ela sim, a filha, sabe o destino do dinheiro. Na visão do ortodoxo e devotado religioso, está bem empregado, em nome do Senhor, nas paredes da igreja. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

MAS, NÃO É CARNAVAL?


Arquivo pessoal 
Final de tarde e o eixão lotado. O trio elétrico atravessado na avenida tocava som estridente. Jovens com copos de vidro e garrafas de bebidas eram barrados pelos policiais. Outros adicionavam, de tubinhos coloridos, cachaça e mel em seus copos de vodka, e meia dúzia de gatos pingados dançavam, pasmem, funk. Mas, não é carnaval? Será que a canoa já virou e não contaram? Allah-ô ô ô ô, mas que horror ô ô ô ô! A esta altura a estrela Dalva apagou, o Zezé perdeu a cabeleira e as águas rolaram. 
“Prefiro ficar em casa deitada no sofá, vendo televisão e comendo chocolate”. Esta foi a frase que escutei de uma adolescente sobre o carnaval brasiliense. Tentei ponderar dizendo que como não estava acompanhada por suas amigas, a alegria não era completa. Ela balançou a cabeça desanimada e não mudou de ideia. Saímos do eixão sul e seguimos por outras quadras a procura do “pacotão e galinho de Brasília”. Estávamos atrasados, os dois blocos já haviam fechado suas portas. Então, o jeito foi partir para a comilança e distrair o estômago com açaí e batata frita. 
Com cinco anos de idade, fui reconhecida como a criança mais foliona do coreto onde eu dançava marchinhas.  Em Sulacap, bairro onde eu morava, havia muita folia e jovens mascarados assustando os que passavam. Fantasiada de colombina, bahiana, pirata, primavera... frequentava as matines de um clube da vizinhança. Animada eu cantava... Ei você aí Aurora, diga que é mentira, seja sincera comigo. Diga que ô balancê vai regressar. Dá um dinheiro aí e abre alas que eu quero passar, aqui no eixão eu não quero ficar. 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

TOPA DANÇAR?

Arquivo Pessoal
Topa dançar? Eu topo. Pode ser em casa, no salão, na praça ou na estação. Este é nosso lema e não há espaço para timidez. Onde estivermos, com ou sem música, com ou sem plateia. Dançamos.
As primeiras vezes foram, aqui mesmo, em Brasília. Tudo estava organizado. Havia mesa, cadeiras, banda e muita água para beber e não desidratar.
Estávamos em Coimbra, em uma estação aguardando o trem chegar. Estava distraída observando detalhes do lugar quando sem aviso fui convidada a dançar. Estranhei, porém aceitei sem pestanejar. Bailamos ao som de nossos corações, até o trem anunciar.
Outro projeto de viagem e uma surpresa. Perto do hotel onde estávamos hospedados havia uma grande praça, ainda decorada com símbolos natalinos. Ficamos sentados, exaustos dos passeios diários. Escutamos música, e como quem não quer nada, seguimos na direção. A banda iniciou suavemente, até que disparou um rock uruguaio e não resistimos à tentação.
Uma escala em Foz, dois dias em Lima, um passeio, aniversário da cidade, outra praça e uma banda a tocar. Desta vez não houve convite, olhares se cruzaram aquecidos com o calor solar e lá estávamos, novamente, a bailar. 

MARAVILHA DA NATUREZA


Arquivo Pessoal 
Iniciei viagem com destino ao Peru com conexão show de bola, Foz do Iguaçu. Do avião o comandante anunciou o que Marco e eu havíamos avistado de longe, “senhores passageiros, do lado esquerdo da aeronave, vocês podem admirar as cataratas do rio Iguaçu”. Estava radiante, vendo mais uma vez à sétima maravilha da natureza, no meio da mata atlântica.
Após rápido almoço seguimos para as cataratas, desta vez do lado brasileiro. Em 2005 estive nas cachoeiras argentinas. Segui longo, seguro e agradável caminho, por um píer, até a impressionante queda das águas de 83 metros de altura, na “garganta do diabo”. Visão endiabrada para meu tamanho.
Arquivo Pessoal - píer brasileiro
Na época, não estive nas cataratas brasileiras porque fui informada que não era formosa. Treta. "Nossas” saltos são fascinantes. Desci em elevador panorâmico admirando, de boca aberta, vasta queda d’água. Do mezanino os respingos molhavam meus cabelos grisalhos. No píer, iluminadas gotas d’água que sobrevoavam o céu, tocavam aventureiros, deixando-os encharcados da cabeça aos pés.
Maravilhas são sensações que mexem e remexem com nossas emoções. Estão cunhadas no coração. Foz do Iguaçu, Cristo Redentor, Torre de Belém, Machu Picchu..., minha saudosa Pedra de Guaratiba são espetáculos que já conheço. Existem outras e faço planos para visitar. Arquiteturas modernas, medievais e gigantes da natureza do nosso planeta.

TI TI TI



No aeroporto de Lima, Marco e eu descobrimos que não sentaríamos lado a lado durante a viagem até Cusco, que levam eternos 60 minutos. Na aeronave procuramos por nossos lugares, assim como outros tantos estrangeiros tranquilos e nervosos. O voo estava lotado e dentre as línguas faladas eu conhecia duas, o português e um complexo portunhol. 
Mal acomodo no assento, a senhora ao lado pergunta se falo inglês. Respondo que não, com um sorriso amarelo no rosto, porém com orgulho digo “espanhol”. Quando jovem tive inúmeras oportunidades para aprender inglês. Aliás aprendi, um pouco, mas a essa altura do campeonato, da idade e da memória, só lembro: what your name? How are you? How years old? Todos os goods; beautiful, nome de salão de beleza, ou seja, o básico do básico. Oh my god! Well, até que tentamos conversar, juro, mas não deu. Eu não entendia a ela e ela não entendia a mim.
Do outro lado, para minha alegria, uma argentina. Apertei o cinto, mas a conversa com a jovem correu frouxa. Conversamos de A a Z, até que ela comentou sobre sua atração pelas novelas brasileiras. Lamentava que por causa da viagem iria perder os capítulos da novela, que está sendo reprisada. Que a audiência em seu país é enorme porque as novelas brasileiras são reais, apresentam a vida como ela é, com intensidade. Completou “as nossas são sem graça”, e torceu a boca em sinal de menosprezo pelas do seu país. Assim também mencionou uma vendedora peruana que encontrei em uma livraria de Lima “quando fecho a loja corro para casa para não perder o capítulo” e acrescentou “não perco nunca”.
Gente, viajar é cultura e concluo: “pessoas de todas as nacionalidades adoram sofrimento, barraqueira e azaração!” Por somente falar espanhol perdi um TI TI TI danado de bom.

DÓLAR RASGADO


Fiquei indecisa sobre onde ir nas férias de final de ano. Vaguei pela Venezuela, Chile, subi até o México e desci para o Peru. Não pensei na Europa porque o momento era de frio, neve e muitos agasalhos. Esta visita fica para época mais quente, de roupas mais frescas e mala mais leve. 
Eu e Marco finalmente decidimos pelo Peru porque já estávamos enamorados de Cusco e Machu Picchu há cerca de 2 anos. Merida Guadalupe, nossa professora de espanhol, faz parte do motivo do enamoramento. Em vários momentos de sua aula explanava sobre a civilização Inca, a riqueza da catedral de Cusco, de sua terra natal Urubamba e de tantas outras belezas de sua terra. Com pesar, também mencionava sobre as dificuldades financeiras de seu povo.
Escolhemos nosso trajeto e algumas decisões importantes tivemos que tomar, como por exemplo o câmbio de nossa moeda. No Peru, aceitam o dólar, em algumas lojas o real, e o soles moeda local. Lá usávamos o dólar e de troco, geralmente, recebíamos soles. Eu fiz inicialmente a maior confusão. Queria dar soles em lugar do dólar porque eu não tinha nenhuma intimidade com ambas as moedas. Até que fui adquirindo mais confiança, no Marco é claro, e quando precisava pagar alguma conta consultava o respectivo.
A nota de dólar tinha que estar impecável. Se tivesse um corte em sua borda, quase imperceptível, os comerciantes não aceitavam. Não havia explicação ou sinal de lamento que os fizessem compreender que recebemos, de outros comerciantes, a nota naquele estado de conservação. Mas aprendemos a lição e passamos a ter maior cuidado com os dólares que recebíamos.
No último dia em Cusco, ainda havia uma nota de 20 dólares danificada na minha carteira. O que fazer? Como transferir o prejuízo para outro? E a consciência? A culpa? Então ao comprar um CD de um cantor da região, o Marco explicou: “senhor recebemos esse dinheiro, de troco, em seu país. Nós não somos responsáveis por este dano, portanto ele deve permanecer na sua terra”. O comerciante diante do nosso desalento aceitou a nota dizendo “tá bom, tá bom”.