sexta-feira, 31 de julho de 2015

NA CALADA DA NOITE

Arquivo pessoal
Raquel, mulata de cabelos encaracolados, ambiciosa e aluna aplicada do curso de enfermagem. Estuda a noite porque trabalha no período diurno. É responsável pelas mensalidades da faculdade e contribui com as despesas domésticas. Ônibus coletivo é o meio de transporte. Após longa jornada, chega à casa esgotada. Saúda os familiares, toma banho morno, faz lanche e vai dormir.  
Na madrugada de segunda-feira acorda assustada com forte barulho. Seu pai acende as luzes e segue para a porta da cozinha. A mãe vai em direção à janela da frente. Ambos acreditam ser um intruso. Ninguém tem coragem de sair da casa. A balbúrdia cessa e a família retorna ao aposento. O tempo de silêncio foi curto. Assustados com a algazarra retornam a sala e sussurram que estão apavorados. O avô de Raquel decide sair para o jardim. O filho segura seu pijama para conter a ousadia. 
A algazarra é no telhado. Ladrão impossível, porque a tática de invasão é silenciosa. O temor avança e Raquel tem brilhante ideia. Liga para delegacia. 
Amanhecendo, chega à viatura da polícia. Todos ao mesmo tempo querem dar declaração. O agente pede silêncio e com calma escuta o depoimento. Solicita uma escada. Procura por vestígios e encontra penugem de animal e um pedaço de carne salgada dentro de uma gaiola. O avô, as gargalhadas, confessa ter colocado o petisco para salgar no sol, acreditando que o telhado era local seguro.

sábado, 25 de julho de 2015

FONTE DO LEITE

Arquivo pessoal
Angélica convida os amigos para churrasco em sua casa. Era festa de batizado do filho de seis meses. Aos convidados prometeu fazer deliciosa sobremesa. A manhã transcorre serena e os preparativos estão de agrado. O marido envolvido com o tempero da carne e arrumação das mesas ao redor da piscina. Ela prepara arroz a grega e salada de maionese. Lembra de fazer o pudim e  separa os ingredientes. Leite, leite condensado e ovos. Na geladeira e despensa faltava o leite.
Corre em direção ao marido e solicita que vá ao comércio comprar o ingrediente. Prontamente atende ao pedido da mulher que foi pegar a chave do carro, mas não achou.
Rapidamente encontra alternativa. Sem avisar o marido, vai ao quarto e bombeia de seu busto 200 ml de leite materno. Mistura os ingredientes no liquidificador, caramela a forma e assa o pudim em banho-maria.
Os convidados chegam com presentes para o bebê. No som toca axé e o cheiro atraente da carne na churrasqueira perfuma o ambiente. O grupo conversa sobre amenidades, porque assuntos sobre futebol e política são vetados pelas mulheres. Ao término do almoço Angélica traz o pudim. Sem constrangimento serve os convidados, que após degustarem a saborosa sobremesa descobrem a fonte do leite.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

OLHOS DE JUDITE

Arquivo pessoal
Judite trabalhava muito há 23 anos. A poupança engordava simultânea aos plantões noturnos para construir a casa dos sonhos. As despesas do lar eram de minha responsabilidade. Após alguns anos, compramos terreno, ideia adiada várias vezes por questões financeiras. Sempre que havia disponibilidade, ela ia ao terreno regar o pé de pequi e jabuticaba, que plantou ao comprarmos a terra. 
Dinheiro para contratar arquiteto era escasso. Soube por nosso filho adolescente que há programa na internet com distintos estilos de casas. Juntos escolheram a que cumpria as necessidades da família. Enquanto isso solicitou ao banco empréstimo para somar ao da poupança. Decidiu que era hora de concluir o sonho. Iniciou a compra do material de construção e contratou mestre de obra para fazer o alicerce.
Diminuí a contribuição mensal porque fiquei desempregado e passei a fazer bicos. O trabalho exigente no hospital a solicitava em demasia, aumentando o estresse. Dores de cabeça acompanharam a vida diária de Judite. A coluna queimava com o peso das responsabilidades no emprego e a construção da casa. Usava como alívio a automedicação. Apesar dos contratempos com a saúde, seguiu firme em seu objetivo. 
O tempo foi suficiente para a jabuticabeira dar flor, o pequizeiro abrigar do sol a casinha do cachorro e a obra terminar. Tirou férias e iniciamos a mudança. Judite estava empolgada com a casa cheirando tinta fresca. Enfeitou com capricho a nova residência para as festas de final de ano. 
O descanso terminou e ela regressou ao trabalho. As dores de cabeça intensificaram. Deixou os plantões nos finais de semana e feriados por recomendação médica. Um dia, pela manhã, enquanto trocava de roupa no vestuário do hospital, sentiu o mundo girar e desmaiou. Transportada as pressas até a emergência, duas horas depois Judite foi a óbito.
Fiquei solitário na dor. Desamparado com a perda, reagi para cuidar do filho. Após dois anos encontrei em outra mulher, os olhos de Judite. Casei e sigo habitando a residência dos sonhos.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

IH DOUTOR! ESQUECI.

Seu nome tem origem inglesa. O temperamento é impulsivo e permanece inquieta quando precisa tomar decisões. Recentemente completou 60 anos e ficou viúva a pouco mais de um ano. Atualmente dedica sua vida a desfrutar dos filhos, ambos médicos assim como foi o pai e avô, e do neto. Aproveita o tempo livre para viajar pelo Brasil. Viagens longas a deixam ansiosa. O guarda-roupa tem estilo próprio. Vive a sua maneira e rechaça com veemência os que criticam seu estado de espírito.
As redes sociais são companheiras nas horas de solidão. Posta poemas de Drummond, jardins floridos, imagens exuberantes de castelos, museus, objetos de artes, fotos pessoais da família e de si mesma. Comenta sobre tudo o que a irrita e a língua é afiada quando o assunto é saúde e educação.
Acompanho diariamente os comentários porque somos amigas do Facebook. Um em particular chamou atenção. Comenta que estava atordoada com a quantidade de pessoas aguardando o atendimento em clínica particular, que recebe convênios. Enquanto isto observou particularidades: “a única diferença da clínica para o SUS é o ar condicionado e água gelada para arrefecer o calor e secura da garganta”. Outro detalhe, sem comparação com o SUS, foi o acolhimento do médico. Ao ser consultada, o clínico indiferente leu os exames, repassou os resultados e interrogou sobre a saúde familiar. Kate para ser gaiata, quebrar o gelo e ganhar a simpatia do médico comentou: “Um horror! Minha mãe e meu tio enfartaram. Meu irmão faleceu aos 57 anos de aneurisma. O esposo... Ih doutor! Esqueci. Marido não é parente”. Ainda sisudo e olhar apático, o médico encerrou a consulta com um amém.






quinta-feira, 2 de julho de 2015

DAIANE, CAMUFLADA


Essa é uma história de encontros e desencontros, como tantas outras que você conhece. Ambos eram casados. Ele estava aborrecido com o matrimônio, emprego e profissão. Queria fazer mudanças, mas tinha medo de arriscar. De um lado, segurança adquirida ao longo dos anos, do outro insatisfação.
O computador permitia fantasias, viagens duradouras e seguras. Entrou na sala de bate-papo e lá encontrou “Daiane, a solitária”.  Protegidos mantiveram contato por três meses. Ela desde o princípio omitiu nome, endereço, profissão. Mentia sobre sua vida particular. 
Ele falava sobre sua vida. Contava estripulias e sobre viagens. Particularidades evitava mencionar. Tentou conhecer Daiane, mas ela recusa os convites. Tinha compromissos com a família e queria permanecer no conforto do lar. Seguia vida branda. 
Em um feriado, enquanto o marido atende ao telefone, observa o computador dele ligado. Senta, abre as janelas do site e reconhece o diálogo para “Daiane, a solitária”. O homem romântico, que a conquistou por três meses no site de relacionamento, era o marido. Ele observa a mulher na página da web e fica impactado. Aproxima e dá explicação, mas Daiane camuflada esconde o outro lado da versão.